Cinema da USP dá espaço para filmes focados nos pequenos gestos
Na contramão dos filmes cheios de ação, movimento e aventuras, existem abordagens cinematográficas pautadas na ideia de desenvolver tramas num ritmo mais lento e em situações mais cotidianas e menos conflituosas. É nesse princípio que se baseia a nova mostra do Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp), Nada Acontece. “São filmes sem um grande enredo, que trazem uma sensação, talvez, de dilaceramento do tempo, fazendo com que ele se funda, por vezes, ao tempo do espectador”, afirma Maria Fernanda Araujo, curadora da mostra, ao lado de André Quevedo, Filipe Oliveira e Francesco Félix.
Ao todo, serão exibidos 20 filmes, sendo 16 longas-metragens, dois médias-metragens e dois curtas, vindos de 11 países. A mostra fica em cartaz até 31 de agosto, com sessões na Nova Sala do Cinusp, instalada no Centro Cultural Camargo Guarnieri, na Cidade Universitária, em São Paulo, e no Centro MariAntonia da USP, na Vila Buarque, região central de São Paulo. A entrada é grátis. A programação completa da mostra está disponível no site do Cinusp.
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A nova mostra também terá sessões especiais, que incluem debate sobre as obras apresentadas. Uma dessas sessões será nesta quinta-feira, dia 14, às 19 horas, quando serão exibidos dois médias-metragens do artista e cineasta estadunidense Andy Warhol (1928-1987): Kiss (1963), filme que traz cenas de vários casais se beijando, e Blow Job (1964), que mostra as reações de um homem recebendo sexo oral. Após a sessão, haverá debate com a presença de Fernanda Fachin, mestranda do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que estuda Warhol.
A outra sessão especial acontece no dia 28, às 16 horas. Na ocasião serão exibidos dois filmes da diretora belga Chantal Aderkman: Eu, Tu, Ele, Ela (1974) e La Chambre (1972). Após a sessão, haverá debate com o crítico de cinema e professor Luiz Carlos de Oliveira Jr., da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
“O primeiro é um filme sobre uma mulher, interpretada pela própria Chantal, que passa por um fim de relacionamento com uma namorada e fica trancada num apartamento, entregue ao tempo. Depois, pega uma carona com um caminhoneiro e tem algumas conversas, mas nada muito expressivo acontece”, conta a curadora, que destaca o fato de que Eu, Tu, Ele, Ela ficou marcado por ser uma das primeiras obras não pornográficas do cinema a trazer uma longa cena de sexo entre duas mulheres. O segundo filme é um curta-metragem: “É um exercício de Chantal, no qual ela coloca uma câmera panorâmica para rodar em 360 graus pelo apartamento dela e fica deitada”.
Também de Chantal, está prevista a exibição do longa-metragem Jeanne Dielman, nesta sexta-feira, dia 22, às 19 horas, na Nova Sala. O filme tem mais de três horas de duração e, segundo Maria Fernanda, conta a história de uma mulher viúva que vive em um apartamento e resolve coisas do dia a dia enquanto cuida de seu filho, e aos poucos “tem o seu cotidiano desmantelado”.
Além dos dois curtas de Andy Warhol, o longa Sleep, dirigido pelo cineasta estadunidense e lançado em 1963, será projetado até o final da mostra no hall de entrada do Centro Cultural Camargo Guarnieri. No filme, que tem mais de cinco horas de duração, Warhol grava o seu companheiro dormindo.
Gestos simples
Maria Fernanda explica que a base para a curadoria da mostra é um artigo do professor Luiz Carlos de Oliveira Jr., da UFJF, intitulado A Estética de Absorção do Cinema Contemporâneo, que trata do filme Pai e Filhos (2014), do chinês Wang Bing– em cartaz em Nada Acontece. “O professor pega o termo ‘absorção da pintura’ de um crítico de arte chamado Michael Fried, que fala sobre pinturas do século 18 focadas na observação e nas pessoas entregues à passagem do tempo, e aplica esse conceito ao cinema: o espectador se vê absorvido por um filme em que as pessoas estão entregues ao tempo ou fazendo atividades cotidianas.”
No caso de Pai e Filhos, a trama se desenvolve a partir de uma visita de Bing à província mineradora de Yunnan, na China, onde ele filma um pai, minerador, que vive numa casa de um cômodo com seus dois filhos. “É um filme que basicamente tem uma câmera parada ali. Praticamente o filme inteiro é dentro desse cômodo, onde você vê o cotidiano desses dois adolescentes. Eles vivem numa situação de extrema pobreza, então ficam o dia inteiro mexendo no celular ou vendo televisão, deitados, até que o pai chega do trabalho e eles conversam um pouco.”
De uma ideia semelhante partem Dias Perfeitos (Wim Wenders, 2023) e Temporada (André Novais Oliveira, 2018). O primeiro fala sobre Hirayama, um limpador de banheiros de Tóquio apaixonado pelas artes e que acaba por se reconectar com o passado por meio de alguns encontros. Já o segundo é da produtora audiovisual brasileira Filmes de Plástico, responsável pela produção de Marte Um (Gabriel Martins, 2022). “No filme, Grace Passô interpreta uma mulher que se muda para uma cidade do interior de Minas Gerais, onde começa a trabalhar como agente de saúde comunitária. E aí vemos o processo de adaptação à cidade, as dificuldades e as coisas boas. É um filme muito bonito, delicado, cheio de gestos”, conta a curadora.

Outro destaque trazido por Maria Fernanda é o sul-coreano A Mulher que Fugiu (2020), de Hong Sang-Soo. O longa traz uma protagonista que aproveita a viagem do marido para encontrar as amigas, e usa das atitudes de seu cotidiano para, como aponta o texto de divulgação da mostra, “desvelar o cotidiano das mulheres e mostrar como é o seu dia a dia quando, de alguma maneira, fogem dos homens”.
Já Síndromes e um Século (2006), lembra a infância do próprio diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, conhecido por fazer filmes lentos. Os pais dele eram médicos, e a obra explora suas memórias do ambiente hospitalar. A curadora também destaca Do Apartamento Dele, do francês Jean-Claude Rousseau, filme que, de acordo com o texto de divulgação, retrata o próprio diretor em seu apartamento. Descrito como um “trabalho minimalista” pelo Cinusp, o filme de pouco mais de uma hora de duração aborda atividades do dia a dia de Rousseau.
O cotidiano como centro
O dia a dia também é tema de A Liberdade (Lisandro Alonso, 2001), obra que joga luz à “banalidade quase angustiante”, como aponta o texto de divulgação da mostra, ao expor um dia de trabalho comum de um homem que corta árvores e vende madeira. Uma temática semelhante aparece no curta Walker (2012), do taiwanês Tsai Ming-Liang, que retrata um homem caminhando tranquilamente por Hong-Kong em meio ao caos que acontece em seu entorno. Esse filme é exibido sempre depois de um longa de Ming-Liang: Dias (2020), que mostra o encontro entre Kang e Non, dois homens de realidades diferentes que, após se verem, retornam às suas vidas ordinárias.
O tédio e a superficialidade também são tônicas de Estranhos no Paraíso (Jim Jarmusch, 1984), longa que mostra momentos da vida de três jovens diferentes, numa comédia que tem sua essência nos diálogos longos e pouco profundos, uma vez que os jovens não sabem muito bem o que fazer com suas vidas.
Já Umberto D (Vittorio De Sica, 1952) conta a história de Umberto, um homem que vive da aposentadoria que recebe do Estado no pós-Segunda Guerra Mundial e que acaba recebendo uma ameaça de despejo da proprietária da pensão onde vive por dever o aluguel. 11×14 (James Benning, 1977), por sua vez, apresenta 65 planos diferentes, todos de um ponto de vista contemplativo e abordando histórias diversas espalhadas pelo centro-oeste dos Estados Unidos.

A mostra tem, ainda, mais dois filmes: O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962) e Pai e Filha (Yasujirō Ozu, 1949). O italiano encerra a Trilogia da Incomunicabilidade, de Antonioni, e conta a história de aproximação de um casal que parecia, inicialmente, distante. O texto de divulgação da mostra destaca que “a encenação se torna gradativamente mais autônoma, conduzindo os personagens, não o contrário”, de forma que haja uma “indiferença entre espaço, objeto e ser humano”.
Já o japonês é baseado no conto homônimo de Kazuo Hirotsu e tem como ponto de partida Noriko, que cuida de seu pai viúvo e vê a tranquilidade de sua vida interrompida quando começam a incentivá-la a se casar antes que fique muito velha. Segundo o texto de divulgação do Cinusp, o longa faz uma analogia com os ciclos da natureza, em que o tempo e suas consequências são iminentes, bem como “a transformação da vida das personagens em sua lenta e cotidiana crise”.
A mostra Nada Acontece, do Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp), está em cartaz até 31 de agosto, em sessões às 16h, 18h e 19h, nas salas do Cinusp instaladas no Centro Cultural Camargo Guarnieri da USP (Rua do Anfiteatro, 109, Cidade Universitária, São Paulo) e no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 258, Vila Buarque, região central de São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do metrô). Entrada grátis. A programação completa da mostra e mais informações estão disponíveis no site do Cinusp.
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